domingo, 6 de março de 2011

Martinho Lutero



No cárcere, sentenciado pelo Papa a ser queimado vivo, João Huss disse: Podem matar um ganso (na sua língua, 'huss' é ganso), mas daqui a cem anos, Deus suscitará um cisne que não poderão queimar” .

Enquanto caía a neve, e o vento frio uivava como fera em redor da casa nasceu esse cisne, em Eisbelen, Alemanha. No dia seguinte, o recém-nascido era batizado na Igreja de São Pedro e São Paulo. Sendo dia de São Martinho, recebeu o nome de Martinho Lutero.

Cento e dois anos depois de João Huss expirar na fogueira, o cisne” afixou, na porta da Igreja em Wittenberg, as suas noventa e cinco teses contra as indulgências, ato que gerou a Grande Reforma.

Para dar o valor devido à obra de Martinho Lutero, é necessário notar algo das trevas e confusão dos tempos em que nasceu.

Calcula-se que, pelo menos, um milhão de albigenses foram mortos na França, a fim de cumprir a ordem do Papa, para que esses hereges” fossem cruelmente exterminados. Wiclif, a Estrela da Alva da Reforma, traduzira a Bíblia para a língua inglesa. João Huss, discípulo de Wiclif, morrera na fogueira, na Boêmia, cantando hinos, nas chamas, até o último suspiro. Jerônimo de Praga, companheiro de Huss e também erudito, sofrera o mesmo suplício, pedindo ao Senhor que perdoasse seus pecados. João Wessália, notável pregador de Erfurt, fora preso por ensinar que a salvação é pela graça; seu frágil corpo fora metido entre ferros, onde morreu quatro anos antes do nascimento de Lutero. Na Itália, quinze anos depois de Lutero nascer, Savonarola, homem dedicado a Deus e fiel pregador da Palavra, foi enforcado e seu corpo reduzido a cinzas, por ordem da Igreja Romana.

Em tempos assim, nasceu Martinho Lutero. Como muitos dos demais célebres entre os homens, era de família pobre.

Os pais de Martinho, para vestir, alimentar e educar seus sete filhos, esforçaram-se incansavelmente. O pai trabalhava nas minas de cobre; a mãe, além do serviço doméstico, trazia lenha nas costas, da floresta.

O pai de Martinho, satisfeitíssimo pelos trabalhos escolares do filho, na vila onde morava, mandou-o, aos treze anos, para a escola franciscana na cidade de Magdeburgo.

Para conseguir a sua subsistência em Magdeburgo, Martinho era obrigado a esmolar pelas ruas, cantando canções de porta em porta. Seus pais, achando que em Eisenach passaria melhor, mandaram-no para estudar nessa cidade, onde moravam parentes de sua mãe. Porém esses parentes não o auxiliaram, e o moço continuou a mendigar o pão.

Quando estava a ponto de abandonar os estudos, para trabalhar com as mãos, certa senhora de recursos, D. Úrsola Cota, atraída por suas orações na igreja e comovida pela humilde maneira de receber quaisquer restos de comida, na porta, acolheu-o entre a família. Pela primeira vez Lutero sentira fartura. Mais tarde, ele referia-se à cidade de Eisenach como a cidade bem amada. Quando Lutero se tornou famoso, um dos filhos da família Cota cursava em Wittenberg, onde Lutero o recebeu na sua casa.

Logo depois, os pais de Martinho alcançaram certa abastança. O pai alugou um forno para fundição de cobre e depois passou a possuir mais dois. Foi eleito vereador na sua cidade e começou a fazer planos para educar seus filhos.

Aos dezoito anos, Martinho ansiava estudar numa universidade. Seu pai, reconhecendo a idoneidade do filho, enviou-o a Erfurt, o centro intelectual do país, onde cursavam mais de mil estudantes. O moço estudou com tanto afinco que, no fim do terceiro semestre, obteve o grau de bacharel em filosofia. Com a idade de vinte e um anos, alcançou o segundo grau acadêmico e o de doutor em filosofia. Os estudantes, professores e autoridades prestaram-lhe significativa homenagem.

Seu pai, desejoso de que seu filho se formasse em direito e se tornasse célebre, comprou-lhe a caríssima obra: Corpus Júris. Mas a alma de Lutero suspirava por Deus, acima de todas as coisas. Vários acontecimentos influenciaram-no a entrar na vida monástica, passo que entristeceu profundamente seu pai e horrorizou seus companheiros de universidade.

Durante o ano de noviciato, antes de Lutero ser feito monge, os seus amigos fizeram de tudo para dissuadi-lo de confirmar esse passo. Os companheiros, que convidara para cearem com ele, quando anunciou a sua intenção de ser monge, ficaram no portão do convento dois dias, esperando que ele voltasse. Seu pai, vendo que seus rogos eram inúteis e que todos os seus anelantes planos acerca do filho iam fracassar, quase enlouqueceu.

Quão grande, porém, era sua ilusão. Depois de procurar crucificar a carne pelos jejuns prolongados, pelas privações mais severas, e com vigílias sem conta, achou que, embora encarcerado em sua cela, tinha ainda de lutar contra os maus pensamentos. A sua alma clamava: Dá-me santidade ou morro por toda a eternidade; leva-me ao rio de água pura e não a estes mananciais de águas poluídas; traze-me as águas da vida que saem do trono de Deus!”;

Certo dia Lutero achou, na biblioteca do convento, uma velha Bíblia latina, presa à mesa por uma cadeia. Achara, enfim, um tesouro infinitamente maior que todos os tesouros literários do convento. Ficou tão embevecido que, durante semanas inteiras, deixou de repetir as orações diurnas da ordem. Então, despertado pelas vozes da sua consciência, arrependeu-se da sua negligência: era tanto o remorso, que não podia dormir. Apressou-se a reparar o seu erro: fê-lo com tanto anseio que não se lembrava mais de alimentar-se. Nessa altura, o vigário geral da ordem agostiana, Staupitz, visitou o convento. Era homem de grande discernimento, e devoção enraizada; compreendeu logo o problema do jovem monge; ofereceu-lhe uma Bíblia na qual Lutero leu que o justo viverá da fé. Por quanto tempo tinha ele anelado: Oh! Se Deus me desse um livro destes só para mim! - e agora o possuía!

Na leitura da Bíblia achou grande consolação, mas a obra não poderia completar-se em um só dia. Ficou mais determinado do que nunca a alcançar paz para a sua alma, na vida monástica, jejuando e passando noites a fio sem dormir. Gravemente enfermo, exclamou: Os meus pecados! Os meus pecados! Apesar da sua vida ter sido livre de manchas, como ele afirmava e outros testificavam, sentia sua culpa perante Deus, até que um velho monge lhe lembrou uma palavra do Credo: Creio na remissão dos pecados. Viu então que Deus não somente perdoara os pecados de Daniel e de Simão Pedro, mas também os seus. Pouco tempo depois destes acontecimentos, Lutero foi ordenado padre.

Depois de completar vinte e cinco anos de idade, Lutero foi nomeado para a cadeira de filosofia em Wittenberg, para onde se mudou para viver no convento da sua ordem. Porém a sua alma anelava pela Palavra de Deus, e pelo conhecimento de Cristo. No meio das ocupações de professorado, dedicou-se ao estudo das Escrituras, e no primeiro ano conquistou o grau de baccalaureus ad biblia. Sua alma ardia com o fogo dos céus; de todas as partes acorriam multidões para ouvir os seus discursos, os quais fluíam abundantemente e vivamente do seu coração, sobre as maravilhosas verdades reveladas nas Escrituras.

Um dos pontos mais iluminantes da biografia de Lutero é a sua visita a Roma. Surgiu uma disputa renhida entre sete conventos dos agostianos e decidiram deixar os pontos de dissidências para o Papa resolver. Lutero sendo o homem mais hábil, mais eloqüente e altamente apreciado e respeitado por todos que o conheciam, foi escolhido para representar seu convento em Roma. Fez a viagem a pé, acompanhado de outro monge. Em Roma, visitou os vários santuários e os lugares de peregrinação. Numa certa ocasião, subindo a Santa Escada de joelhos, desejando a indulgência que o chefe da igreja prometia por esse ato, ressoaram nos seus ouvidos como voz de trovão, as palavras de Deus: O justo viverá da fé. Lutero ergueu-se e saiu envergonhado.

Depois da corrupção generalizada que viu em Roma, a sua alma aderiu à Bíblia mais do que nunca. Ao chegar novamente ao convento, o vigário insistiu em que desse os passos necessários para obter o título de doutor, com o qual teria o direito de pregar. Lutero, porém, reconhecendo a grande responsabilidade perante Deus e não querendo ceder, disse: Não é de pouca importância que o homem fale em lugar de Deus... Ah ! Sr. Doutor, fazendo isto, me tirais à vida; não resistirei mais que três meses. O vigário geral respondeu-lhe: Seja assim, em nome de Deus, pois o Senhor Deus também necessita nos céus de homens dedicados e hábeis.

O coração de Lutero, elevado à dignidade de doutor em teologia, abrasava-se ainda mais do desejo de conhecer as Sagradas Escrituras e foi nomeado pregador da cidade de Wittenberg.

Acerca da grande transformação da sua vida, nesse tempo, ele mesmo escreve: Apesar de viver irrepreensivelmente, como monge, a consciência perturbada me mostrava que era pecador perante Deus. Assim odiava a um Deus justo, que castiga os pecadores... Senti-me ferido de consciência, revoltado intimamente, contudo voltava sempre para o mesmo versículo ( Rm 1: 17 ), porque queria saber o que Paulo ensinava. Contudo, depois de meditar sobre esse ponto durante muitos dias e noites, Deus, na sua graça, me mostrou a palavra: ' O justo viverá da fé '. Vi então que a justiça de Deus, nessa passagem, é a justiça que o homem piedoso recebe de Deus pela fé, como dádiva.

A alma de Lutero dessa forma saiu da escravidão; ele mesmo escreveu assim: Então me achei recém-nascido e no Paraíso. Todas as escrituras tinham para mim outro aspecto; perscrutava-as para ver tudo o que ensinavam sobre a ' justiça de Deus ‘. Antes, estas palavras eram-me detestáveis; agora as recebo com o mais intenso amor. A passagem me servia como a porta do Paraíso.

Depois dessa experiência, pregava diariamente; em certas ocasiões, pregava até três vezes ao dia, conforme ele mesmo conta: O que o pasto é para o rebanho, a casa para o homem, o ninho para o passarinho, a penha para a cabra montês, o arroio para o peixe, a Bíblia é para as almas fiéis. A luz do Evangelho, por fim, tomara o lugar das trevas e a alma de Lutero abrasava por conduzir os seus ouvintes ao Cordeiro de Deus, que tira todo o pecado.

Lutero levou o povo a considerar a verdadeira religião, não como uma mera profissão, ou sistema de doutrinas, mas como vida em Deus. A oração não era mais um exercício sem sentido, mas o contato do coração com Deus que cuida de nós com um amor indizível. Nos seus sermões, Deus revelou o seu próprio coração a milhares de ouvintes, por meio do coração de Lutero.

A fama do jovem monge espalhou-se até longe. Entretanto, sem o reconhecer, enquanto trabalhava incansavelmente para a igreja, já havia deixado o rumo liberal que ela seguia em doutrinas e práticas.

Em outubro de 1517, Lutero afixou a porta da Igreja do Castelo em Wittenberg, as suas 95 teses, o teor das quais é que Cristo requer o arrependimento e a tristeza pelo pecado e não a penitência. Lutero afixou as teses ou proposições para um debate público, na porta da Igreja, como era costume nesse tempo. Mas as teses, escritas em latim, foram logo traduzidas em alemão, holandês e espanhol. Antes de decorrido um mês, para a surpresa de Lutero, já estavam na Itália, fazendo estremecer os alicerces do velho edifício de Roma. Foi desse ato de afixar as 95 teses na Igreja de Wittenberg, que nasceu a Reforma Protestante, isto é, que tomou forma o grande movimento de almas que em todo o mundo ansiavam voltar para a fonte pura, a Palavra de Deus. Contudo Lutero não atacara a Igreja Romana, mas antes, pensou fazer defesa do Papa contra os vendedores de indulgências.

Em agosto de 1518, Lutero foi chamado a Roma para responder a uma denúncia de heresia. Contudo, o eleitor Frederico não consentiu que fosse levado para fora do país; assim Lutero foi intimado a apresentar-se em Augsburgo. Eles te queimarão vivo, insistiram seus amigos. Lutero, porém, respondeu resolutamente: Se Deus sustenta a causa, ela será sustentada.

A ordem do núncio do Papa em Augsburgo foi: Retrata-se ou não voltará daqui. Contudo Lutero conseguiu fugir, passando por uma pequena cancela no muro da cidade, na escuridão da noite. Ao chegar de novo em Wittenberg, um ano depois de afixar as teses, era o homem mais popular em toda a Alemanha. Não havia jornais nesse tempo, mas fluíam da pena de Lutero respostas a todos os seus críticos para serem publicadas em folhetos. O que escreveu dessa forma, hoje seriam cem volumes.

Quando a bula de excomunhão, enviada pelo Papa, chegou a Wittenberg, Lutero respondeu com um tratado dirigido ao Papa Leão X, exortando-o, no nome do Senhor, a que se arrependesse. A bula do Papa foi queimada fora do muro da cidade de Wittenberg, perante grande ajuntamento do povo.

Porém, o imperador Carlos V, que ia convocar sua primeira Dieta na cidade de Worms, queria que Lutero comparecesse para responder, pessoalmente, aos seus acusadores. Os amigos de Lutero insistiram em que recusasse ir. Não fora João Huss entregue a Roma para ser queimado, apesar da garantia de vida por parte do imperador? Mas em resposta a todos que se esforçavam por dissuadi-lo de comparecer perante seus terríveis inimigos, Lutero, fiel a chamada de Deus, respondeu: Ainda que haja em Worms, tantos demônios como quantas sejam as telhas nos telhados, confiando em Deus, eu aí entrarei. Depois de dar ordens acerca do trabalho, no caso de ele não voltar, partiu.

Na sua viagem para Worms, o povo afluía em massa para ver o grande homem que teve coragem de desafiar a autoridade do Papa. Em Mora, pregou ao ar livre, porque as igrejas não mais comportavam as multidões que queriam ouvir seus sermões. Ao avistar as torres das igrejas de Worms, levantou-se na carroça em que viajava e cantou o seu hino, o mais famoso da Reforma: “Ein Feste Berg”, isto é: Castelo forte é o nosso Deus. Ao entrar, por fim, na cidade, estava acompanhado de uma multidão de povo muito maior do que fora ao encontro de Carlos V. No dia seguinte foram levado perante o imperador, ao lado do qual se achavam o delegado do Papa, seis eleitores do império, vinte e cinco duques, oito margraves, trinta cardeais e bispos, sete embaixadores, os deputados de dez cidades e grande número de príncipes, condes e barões.

Sabendo que tinha de comparecer perante uma das mais imponentes assembléias de autoridades religiosas e civis de todos os tempos, Lutero passou a noite anterior de vigília. Prostrado com o rosto em terra, lutando com Deus, chorando e suplicando.

Quando, na assembléia, o núncio do Papa exigiu de Lutero, perante a augusta assembléia, que se retratasse, ele respondeu: Se não me refutardes pelo testemunho das Escrituras, ou por argumentos - desde que não creio somente nos papas e nos concílios, por ser evidente que já muitas vezes se enganaram e se contradisseram uns aos outros - a minha consciência tem de ficar submissa à Palavra de Deus. Não posso retratar-me, nem me retratarei de qualquer coisa, pois não é justo nem seguro agir contra a consciência. Deus me ajude! Amém.

Apesar de os papistas não conseguirem influenciar o imperador a violar o salvo-conduto, para que pudesse queimar na fogueira o assim chamado herege, Lutero teve de enfrentar outro grave problema. O edito de excomunhão entraria imediatamente em vigor; Lutero por causa da excomunhão, era criminoso e, ao findar o prazo do seu salvo-conduto, devia ser entregue ao imperador; todos os seus livros deviam ser apreendidos e queimados; o ato de ajudá-lo em qualquer maneira era crime capital.

Mas para Deus é fácil cuidar dos seus filhos. Lutero, regressando a Wittenberg, foi repentinamente rodeado num bosque por um bando de cavaleiros mascarados que, depois de despedirem as pessoas que o acompanhavam, conduziram-no, alta noite, ao castelo de Wartburgo, perto de Eisenach. Isto foi um estratagema do príncipe de Saxônia para salvar Lutero dos inimigos que planejavam assassiná-lo antes de chegar a casa. No castelo, Lutero passou muitos meses disfarçado; tomou o nome de cavaleiro Jorge e o mundo o considerava morto. Contudo, no seu retiro, livre dos inimigos, foi-lhe concedido à liberdade de escrever, e o mundo logo soube, pela grande quantidade de literatura, que essa obra saía da sua pena e que, de fato, Lutero vivia. O reformador conhecia bem o hebraico e o grego e em três meses tinha vertido todo o Novo Testamento para o alemão - em poucos meses mais a obra estava impressa e nas mãos do povo. Cem mil exemplares foram vendidos, em quarenta anos, além das cinqüenta e duas edições impressas em outras cidades. Era circulação imensa para aquele tempo, mas Lutero não aceitou um centavo de direitos. A maior obra de toda a sua vida, sem dúvida, fora de dar ao povo alemão a Bíblia na sua própria língua - depois de voltar a Wittenberg. O seu êxito em traduzir as Sagradas Escrituras para o uso dos mais humildes, verifica-se no fato de que, depois de quatro séculos, sua tradução permanece como a principal.

Depois de abandonar o hábito de monge, Lutero resolveu deixar por completo a vida monástica, casando-se com Catarina Von Bora, freira que também saíra do claustro, por ver que tal vida é contra a vontade de Deus. O vulto de Lutero sentado ao lume, com a esposa e seis filhos que amava ternamente, inspira os homens mais que o grande herói ao apresentar-se perante o legado em Augsburgo.

Nas suas meditações sobre as Escrituras, muitas vezes se esquecia das refeições. Ao escrever o comentário sobre o Salmo 23, passou três dias no quarto comendo somente pão e sal. Quando a esposa chamou um serralheiro e quebraram a fechadura, acharam-no escrevendo, mergulhado em pensamentos e esquecido de tudo em redor.

É difícil concebermos a magnitude das coisas que devemos atualmente a Martinho Lutero. O grande passo que deu para que o povo ficasse livre para servir a Deus, como Ele mesmo ensina, está além da nossa compreensão. Era grande músico e escreveu alguns dos hinos mais espirituais cantados atualmente. Compilou o primeiro hinário e inaugurou o costume de todos os assistentes aos cultos cantarem juntos. Insistiu em que não somente os do sexo masculino, mas também os do feminino fossem instruídos, tornando-se, assim, o pai das escolas públicas. Antes dele, o sermão nos cultos era de pouca importância. Mas Lutero fez do sermão a parte principal do culto. Ele mesmo servia de exemplo para acentuar esse costume: era pregador de grande porte. Considerava-se como sendo nada; a mensagem saía-lhe do íntimo do coração: o povo sentia a presença de Deus. Em Zwiekau pregou a um auditório de 25 mil pessoas na praça pública.

Calcula-se que escreveu 180 volumes na língua materna e quase um número igual no latim. Apesar de sofre de várias doenças, sempre se esforçava dizendo: Se eu morrer na cama será uma vergonha para o Papa.

Os homens geralmente querem atribuir o grande êxito de Lutero à sua extraordinária inteligência e aos seus destacados dons. O fato é que Lutero também tinha o costume de orar horas a fio. Dizia que se não passasse duas horas de manhã orando, recearia que Satanás ganhasse a vitória sobre ele durante o dia. Certo biógrafo seu escreveu : O tempo que ele passa em oração, produz o tempo para tudo que faz. O tempo que passa com a Palavra vivificante enche o coração até transbordar em sermões, correspondência e ensinamentos.

Encontra-se o seguinte na História da Igreja Cristã, por Souer, Vol., 3, pág. 406: Martinho Lutero profetizava, evangelizava, falava línguas e interpretava; revestido de todos os dons do Espírito. [Nota do site: Esta informação não é verdadeira. Não há nada, seja em seus escritos ou biografias confiáveis, que possa sequer supor isso. Pelo contrário, em seus escritos encontramos frases como esta: Fiz uma aliança com Deus: que Ele não me mande visões, nem sonhos nem mesmo anjos. Estou satisfeito com o dom das Escrituras Sagradas, que me dão instrução abundante e tudo o que preciso conhecer tanto para esta vida quanto para a que há de vir].

Nos seus sessenta e dois anos pregou seu último sermão sobre o texto: Ocultaste estas coisas aos sábios e entendidos e as revelaste aos pequeninos. No mesmo dia escreveu para a sua querida Catarina: Lança o teu cuidado sobre o Senhor, e Ele te susterá. Amém. Isso foi na última carta que escreveu. Vivia sempre esperando que o Papa conseguisse executar a repetida ameaça de queimá-lo vivo. Contudo não era essa a vontade de Deus: Cristo o chamou enquanto sofria dum ataque do coração, em Eisleben, cidade onde nascera.

São estas as últimas palavras de Lutero: Vou render o espírito. Então louvou a Deus em alta voz: Oh! Meu Pai celeste! Meu Deus, Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, em quem creio e a quem preguei e confessei, amei e louvei! Oh! Meu querido Senhor Jesus Cristo, encomendo-te a minha pobre alma. Oh! Meu Pai celeste! em breve tenho de deixar este corpo, mas sei que ficarei eternamente contigo e que ninguém me pode arrebatar das tuas mãos. Então, depois de recitar João 3:16 três vezes, repetiu as palavras: Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito, pois tu me resgataste, Deus fiel. Assim fechou os olhos e adormeceu.

Um imenso cortejo de crentes que o amavam ardentemente, com cinqüenta cavaleiros à frente, saiu de Eisleben para Wittenberg; passando pela porta da cidade onde o reformador queimara a bula de excomunhão, entrou pelas portas da Igreja onde, há vinte e nove anos, afixara suas 95 teses. No culto fúnebre, Bugenhangen, o pastor, e Melancton, inseparável companheiro de Lutero, discursaram. Depois abriram a sepultura, preparada ao lado do púlpito, e ali depositaram o corpo.

Quatorze anos depois, o corpo de Melancton achou descanso do outro lado do púlpito. Em redor dos dois, jazem os restos mortais de mais de noventa mestres da universidade.

As portas da Igreja do Castelo, destruídas pelo fogo no bombardeio de Wittenberg em 1760, foram substituídas por portas de bronze em 1812, nas quais estão gravadas as 95 teses. Contudo, este homem que perseverou em oração, deixou gravadas, não no metal que perece, mas em centenas de milhões de almas imortais, a Palavra de Deus que dará fruto para toda a eternidade

“NÃO ME ENVERGONHO DO EVANGELHO”

Franklin Ferreira

1. SUA PEREGRINAÇÃO ESPIRITUAL

Martinho Lutero nasceu em 10 de Novembro de 1483, na Alemanha, na vila de Eisleben, filho de um minerador de prata de classe média, e foi criado em Mansfeld, na Turíngia. Foi uma infância de grandes privações, que o marcaram profundamente. Com 14 anos, foi enviado para Magdeberg, para estudar com os Irmãos da Vida Comum (ordem religiosa fundada pelo holandês Geert Groote, em 1381), e ali foi iniciado na piedade pessoal. Foi nesta escola que Lutero viu pela primeira vez uma Bíblia. Ele ficou pouco tempo na ordem, pois uma enfermidade o obrigou a voltar para casa.

Aos 18 anos, em 1501, seu pai, desejando torná-lo um jurista, o envia para a Universidade de Erfurt. Adquiriu um grande conhecimento de gramática, lógica, metafísica e música.

Mas não se resumem a estes seus estudos. Interessou-se pela teologia escolástica de Guilherme de Occam (1280-1349), que afirmava que Deus não haveria de negar Sua graça ao homem que fizesse tudo quanto estivesse em seu poder, e com o humanismo, que era a redescoberta da cultura clássica. Em 1502 colou grau de bacharel, e em fevereiro de 1505, recebeu o invejável título de Mestre em Artes. Com isto, para deleite de sua família, já poderia dar aulas.

Mas uma convulsão assaltava o jovem Lutero. Seu amigo Filipe Melanchton disse: “Amiúde ao pensar na ira de Deus e em seus juízos, ficava tão atemorizado que quase perdia o alento”. Contra a ira de Deus, Lutero buscava refugio junto à Virgem e aos santos. Na Páscoa de 1503, ele se feriu gravemente, e depois confessou: “Teria morrido, apoiando-me em Maria”. O fato decisivo que o levou, aos 22 anos, a ingressar, na manhã de 18 de Julho de 1505, no Convento dos Eremitas Agostinianos foi uma tempestade violenta que desabou perto dele, quando retornava de sua casa, para a Universidade. Ao perceber sua fragilidade, sua consciência clamou: “Eu, Martinho Lutero, como serei salvo?” Em suas palavras, “eu me dizia continuamente: Oh! Se pudesse ser verdadeiramente piedoso, satisfazer teu Deus, merecer a graça! Eis os pensamentos que me lançaram no Convento!” Invocando Santa Ana, promete fazer-se monge.

A ordem monástica que Lutero havia escolhido se distinguia ao mesmo tempo pela seriedade de seu labor teológico e pela dureza de sua regra. Em 1507 foi ordenado sacerdote, na Catedral de Santa Maria. Mas, no centro de seu pensamento gravita Deus, o Deus de majestade, o Deus que tem Seu trono no céu distante, o Deus da Lei, o Juiz, o Vivo, o Santíssimo, o Senhor que odeia o pecado, e que por conseguinte, condena o pecador. Lutero, na tentativa de tornar-se justo, descreve-se: “Toda a minha vida não era mais do que jejum, vigílias, orações e suores... Se tivesse durado um pouco mais, ter-me-ia martirizado até a morte por meio de vigílias, rezas, leituras e outras espécies de trabalhos.” Tinha um espírito quebrantado e estava sempre triste.

2. NO CAMINHO DA REFORMA

Por causa de sua piedade e inteligência, em 1511, ocorreu um fato que mudaria para sempre sua vida. Johann von Staupitz, o superior da ordem, disse que ele precisava preparar-se para a carreira de pregador e tornar-se doutor em Teologia. Lutero, a princípio, não aceitou, mas Staupitz encerrou a questão: “Tudo deixa entrever que dentro em pouco nosso Senhor terá muito trabalho no céu e na terra. Então, precisará de um grande número de jovens doutores laboriosos. Que vivas, pois, ou que morras, Deus tem necessidade de ti em Seu conselho.”

Em 19 de outubro de 1512, Lutero obteve o grau de doutor em Teologia. Em suas palavras, “eu, Dr. Martin, fui chamado e forçado a tornar-me doutor, contra a minha vontade, por pura obediência e tive de aceitar um cargo de ensino como doutor, e prometo e voto pelas Sagradas Escrituras, que tanto amo, pregar e ensiná-las fiel e sinceramente.”

A partir do inverno de 1512 Lutero começou a preparação para as suas preleções sobre Salmos (1513-1515), Romanos (1515-1516), Gálatas (1516-1517), Hebreus (1517) e novamente Salmos (1518-1519). Ele começou a trilhar o caminho da Reforma como observou, mais tarde: “No transcorrer destes estudos, o papado soltou-se de mim”. Ele abandonou o método de interpretação alegórico, que era dominante, e os comentários dos teólogos escolásticos, pois não contribuíam para uma compreensão do texto. Passou a apoiar-se nos comentários de Santo Agostinho (395-430), que era o expoente da doutrina da graça: A salvação do homem decorre não de realizações próprias, mas da misericórdia de Deus.

Através de seus laboriosos estudos das Escrituras, Lutero chegou a ver que a culpa que o consumia não poderia ser retirada por mais religião, e o Deus que ele tanto temia não era o Deus que Cristo havia revelado. Disparado da Epístola aos Romanos (1.17), outro relâmpago cruzou seu caminho: “Noite e dia eu ponderei até que vi a conecção entre a justiça de Deus e a afirmação de que ‘o justo viverá pela fé’”. Então eu compreendi que a justiça de Deus era aquela pela qual, pela graça e pura misericórdia, Deus nos justifica através da fé.

Com base nisto eu senti estar renascido e ter passado através de portas abertas para dentro do paraíso. Toda a Escritura teve um novo significado e, se antes, a justiça me enchia de ódio, agora ela se tornou para mim inexprimivelmente doce em um maior amor. “Esta passagem de Paulo se tornou para mim um portão para o céu...”

Alguns historiadores entendem que a teologia de Lutero estava virtualmente amadurecida até 1515. Mas, nas exposições dos livros de Salmos e Romanos ele parece um homem andando na direção da luz, mas não que tenha encontrado a luz. Há alguns lampejos, mas estas exposições ainda refletem o entendimento medieval sobre as boas obras e o mérito. Ele chegou ao seu entendimento da justificação, com clareza e certeza, em cerca de 1518-1519. Esta foi a doutrina mais importante da Reforma, e a doutrina mais importante para Lutero. Há três aspectos distintivos do entendimento desta doutrina de Lutero.

1. A justificação envolve a justiça imputada de Cristo, e não a justiça da própria pessoa. Os católicos criam que, se fizermos o necessário, a graça de Deus, dada pelos sacramentos, vai nos possibilitar crescer em justiça ao ponto de, algum dia, sermos realmente justos e dignos do céu. O despertar de Lutero veio no entendimento da frase “a justiça de Deus”. Esta frase significa o dom de Deus, a maneira justa com que ele nos declara justos; que somos justos, aos olhos dele, baseado na obra de Cristo na cruz. Agostinho e os teólogos católicos interpretaram a justificação como “fazer justo”. Lutero falou que o significado é que Deus declara os injustos

– os ímpios – justos! Como ele pode fazer isso? Isto não seria uma ficção? Não, porque Deus nos veste da justiça de Cristo. Então, é possível ter segurança, não baseada nas boas obras, ou mérito, ou justiça pessoal, mas baseada somente na justiça de Cristo, dada a nós por causa da graça de Deus.

2. Esta justiça de Cristo é recebida somente pela fé. A fé não cria esta justiça, não é uma boa obra, mas a fé aceita a graça de Deus e confia em Cristo; ele nos salva. A fé não faz nada ativamente; ela é passiva, ela aceita a obra de Cristo em nosso lugar para nossa salvação. E a própria fé é um dom de Deus. Não há nenhum espaço para mérito humano.

3. Como resultado da justificação, somos simultaneamente e sempre justos e pecadores. Não meio-justos e meio-pecadores, mas completamente justos em Cristo e completamente pecaminosos em nós mesmos. Permanecemos sempre dependentes de Cristo. “Somos verdadeiramente e totalmente pecadores, com respeito a nós mesmos e ao nosso primeiro nascimento. Inversamente, já que Cristo nos foi dado, somos santos e justos totalmente. Então, de diferentes aspectos, somos considerados justos e pecadores ao mesmo tempo”.

“Não posso mudar nada absolutamente daquilo que tenho ensinado até agora sobre a justificação, a saber, que recebemos pela fé um coração novo e puro e que Deus nos reputa justos pela virtude de Cristo nosso mediador... Afirmamos também que não é verdadeira, e portanto nada vale, a fé que não for acompanhada de boas obras” (Lutero).

Ele desvencilhou-se daquilo que tem sido chamado como “o pior erro gramatical do mundo”, isto é, a idéia medieval de que o homem faz-se justo. Mas Paulo, nas Epístolas de Romanos e Gálatas nos ensina que Deus nos declara justos, baseado na perfeita obediência de Cristo, a nós imputada. Errol Hulse afirmou: “A única vez no Novo Testamento, em que nós lemos sobre um forte anátema é Gl.1.9, repetindo duas vezes ‘seja maldito’. O apóstolo declara que quem quer que perverta a justificação pela fé ‘seja maldito’. Não importa quão importante seja o ministro, mesmo que seja um anjo do céu, seja ele maldito.” Lutero, sobre a justificação pela graça, por meio da fé, disse que este era “o artigo pelo qual a igreja se mantém ou cai.”

Lutero também era o pastor da igreja da cidade de Wittemberg, e começou a pregar sua fé recém-descoberta para sua congregação. Mas, ao mesmo tempo, um monge chamado Tetzel, representante do papa Leão X, estava vendendo indulgências para levantar dinheiro para a construção da Catedral de São Pedro, em Roma. As indulgências eram cartas de absolvição que garantiam o perdão dos pecados. Tetzel afirmava: “Não vale a pena atormentar-te: podes resgatar teus pecados com dinheiro! Pagando, podes escapar dos sofrimentos do purgatório e aliviar os dos outros!”, e tudo embalado pelo cântico: “A alma sai do purgatório no preciso momento em que a moeda ressoa na caixa.”

Para Lutero, isto era uma perversão do Evangelho. Em 31 de Outubro de 1517 ele afixou, na porta da Igreja do Castelo, em Wittemberg, as 95 teses que haveriam de marcar o princípio da Reforma. Escolhera intencionalmente aquela data, pois o dia seguinte seria a festa de Todos os Santos, e o príncipe eleitor Frederico ofereceria à veneração de seu povo sua preciosa coleção de 17.443 relíquias (que incluíam um dente de Jerônimo, quatro partes do corpo de João Crisóstomo, quatro fios de cabelo da Virgem Maria, um retalho das fraldas de Jesus, um cabelo de sua barba, um prego de sua cruz, entre outros), cuja veneração valia para os fiéis 127.779 anos de indulgência. O afixar teses não era grande coisa, pois os eruditos naquele tempo faziam isto, mas com a invenção da imprensa, as teses se espalharam pela Europa, dando início à batalha. Elas começam com a famosa exortação: “Ao dizer ‘Arrependei-vos’ Mt4:17, nosso Senhor e Mestre Jesus Cristo quis que toda a vida dos fiéis fosse penitência”.

3. DIANTE DE REIS E PRÍNCIPES

Os eventos se sucedem com rapidez. Em 1518, Frederico, Eleitor da Saxônia dá seu apóia a Lutero. Em 1519, participa do debate de Leipzig, contra Eck. Em 1520 escreve três obras importantes: “Apelo à Nobreza Germânica” (contra a hierarquia romana), “O Cativeiro Babilônico” (contra o sistema sacramental de Roma) e “Sobre a Liberdade do Homem Cristão” (afirmando o Sacerdócio de todos os crentes). Em 10 de Dezembro de 1520 queima os livros de Direito Canônico e a bula papal que o ameaçava de excomunhão. Em começos de 1521, ele é convocado a Worms, perante o Imperador Carlos V e os príncipes da Alemanha, para dar contas de seu ensino.

Depois de dois dias de debates, onde o que está em jogo é a autoridade das Escrituras, ao ser instado a retratar-se e retornar à comunhão com Roma, Lutero exclama: “Já que me pede uma resposta simples, darei uma que não deixa margem à dúvidas: A não ser que alguém me convença pelo testemunho da Escritura Sagrada ou com razões decisivas, não posso retratar-me”. Pois não creio nem na infalibilidade do papa, nem na dos concílios, porque é manifesto que freqüentemente se tem equivocado e contradito. Fui vencido pelos argumentos bíblicos que acabo de citar e minha consciência está presa na Palavra de Deus. Não posso e não quero revogar, porque é perigoso e não é certo agir contra sua própria consciência.

Que Deus me ajude. “Amém.” Era a noite de 18 de Abril de 1521, e um novo dia raiou para a cristandade.

4. EXPANSÃO E CONSOLIDAÇÃO

Em 1529 os príncipes católicos reuniram-se em torno de uma resolução que impedia a introdução da Reforma em seus territórios, mas reclamavam liberdade de culto romano nos territórios conquistados pela Reforma. A recusa solene dos príncipes de “fé evangélica” (como se chamavam) de concordar com esta imposição tornou-os conhecidos por “protestantes”, como passaram a ser chamados.

Até sua morte, com 62 anos, em 18 de Fevereiro de 1546, na vila onde nasceu, em Eisleben, Lutero esteve continuamente envolvido nas controvérsias de seu tempo. Por esta época, sua influência já se havia se espalhado não só pela Alemanha, mas também por partes da Holanda, Suécia, Dinamarca e Noruega. A Reforma seguia seu curso de forma poderosa.

Quem foi Lutero? Ele não foi um homem livre de falhas, muito pelo contrário! Ás vezes

estas eram mais evidentes que suas qualidades! Mas o teólogo reformado Karl Barth, ao entender que o verdadeiro legado de Lutero residia em sua percepção da livre graça de Deus em Cristo, que alcança o homem em seu estado de rebelião, morte e idolatria, afirmou:

“Que mais foi Lutero, além de um professor da Igreja Cristã que não se pode celebrar de outra maneira senão ouvindo-o?”

Fonte: Heróis da Fé, Editora CPAD.

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